MARCILIO DE SOUZA VIEIRA
TEREZINHA PETRUCIA DA NÓBREGA
GRUPO DE ESTUDOS CORPO E CULTURA DE MOVIMENTO (GEPEC)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO (UFRN)
GT 30
Resumo
Trata-se de um recorte da tese de doutorado em Educação. Tematiza o Pastoril bailado que integra o ciclo das festas natalinas do Nordeste, dança de representação dramática, transformada em sincretismo profano-religioso e encontra boa receptividade principalmente na região nordeste do país criando raízes em novas re-elaborações dos personagens como o velho, as mestras e contramestras do bailado. O trabalho tem como objetivo mapear os pastoris no Rio Grande do Norte, apontando a relevância dessa dança dramática para as práticas espetaculares do RN e tem aporte metodológico na Fenomenologia elucidando os elementos citados como cenário do vivido e do sensível.
Unitermos: Pastoril. Cartografia. Bailado religioso e profano.
Pastorais, Bailes Pastoris, Festa da Lapinha, Terno de Reis, Pastor, Pastoril Religioso ou Profano... Pastoris do Norte e Nordeste brasileiro. Mário de Andrade designou-o de Pastoril, dança de origem ibérica tendo sua raiz primeira nos villancicos. Folguedo nitidamente popular, justificado pela presença dos presépios no Pastoril religioso e do Velho, personagem audaz, no Pastoril profano.
O Pastoril, bailado que integra o ciclo das festas natalinas do Nordeste, teve início na Idade Média e era clássico em Portugal onde recebia a denominação de Auto do Presépio. Tinha, contudo, um sentido apologético, de ensino e defesa da verdade religiosa e da encarnação da divindade.
Dança de representação dramática, transforma-se em sincretismo profano-religioso e encontra boa receptividade principalmente na região nordeste do país criando raízes em novas reelaborações dos personagens como o velho, as mestras e contramestras do bailado.
Este trabalho tem como objetivo mapear os pastoris no Rio Grande do Norte, apontando a relevância dessa dança dramática para as práticas espetaculares do RN e tem aporte metodológico na Fenomenologia elucidando os elementos citados como cenário do vivido e do sensível.
O Pastoril persiste ao tempo e a tradicionalidade como uma aprendizagem a partir dos processos da cultura, tem sua origem vinculada ao teatro religioso semi-popular ibérico, pois na Espanha e Portugal, as datas católicas se transformaram em festas eclesiásticas e ao mesmo tempo em festa popular. Segundo autores como Andrade (2002) e Mello e Pereira (1990), desde tempos muito antigos até o final do século XVI, são representadas peças de um ato relativas ao Natal, Reis, Páscoa, numa mistura de elementos pastorais e alegóricos, de bailados, textos e canções. Esse teatro popular se afirmou em Portugal com os villancicos galego-portugueses, fonte primeira dos nossos pastoris.
O caráter religioso desse auto está cheio de teatralidade, porém são os elementos sociais profanos que vão pouco a pouco tomando importância desmesurada, que destrói a finalidade religiosa primitiva do teatro e que nos faz rir.
Podemos dizer que o pastoril traz consigo uma moral cristã percebida principalmente no Pastoril religioso e uma moral sexual arraigada no Pastoril profano. Exaltam seus personagens, saúdam os espectadores, Louva o Messias (Pastoril religioso) e parodia com o público (Pastoril profano).
O bailado em sua forma religiosa ou profana apresenta dois cordões de pastoras que se vestem de azul e vermelho e entre os dois cordões está a Diana que é a mediadora das rivalidades existentes nos cordões de pastoras. As cores, segundo Andrade (2002), representam a luta entre cristãos e mouros, e ainda, a Virgem Maria e Nosso Senhor.
Estudiosos do pastoril apontam o final do século XIX como à passagem do Pastoril religioso para o Pastoril profano. Dessa forma, antigos presépios, lapinhas e pastoris sagrados tiveram que conviver com esse bailado profano. O seu surgimento não implicou a eliminação dos autos natalinos citados, sendo estes encontrados ainda em sua forma sagrada em alguns estados brasileiros da região nordeste.
Parafraseando Eliade (1992), há uma passagem do tempo sagrado para o tempo profano no Pastoril. Este autor diz que o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta como algo diferente do profano. Este humano manifesta o sagrado em um objeto que continua a ser ele mesmo.
O Pastoril religioso ao representar o nascimento da natividade, de certa forma, manifesta o sagrado em sua totalidade; já o Pastoril profano dessacraliza essa religiosidade.
Ao enveredar por esses caminhos, o Auto Pastoril transforma-se em sincretismo profano-religioso, tornando-se, muitas vezes, em profano, com suas características que ressaltam a licenciosidade do Velho do Pastoril e a sensualidade das pastoras.
No Pastoril profano esse comportamento pode ser observado em algumas canções que não trazem características libidinosas. Geralmente essas canções iniciavam/iniciam as jornadas para que estas ficassem/fiquem depois mais picantes com a presença do Velho.
Ratificamos a importância do Pastoril profano para as danças dramáticas brasileiras, uma vez que este ganhou visibilidade a partir da presença de novos personagens que compõem o auto. Neste pastoril de “mulheres libidinosas”, “mulheres feitas”, “mulheres de reputação duvidosa”, “pastoril de jocosidades e obscenidades” figura a presença do Velho, personagem hilário e um dos condutores da “brincadeira”.
Saem às pastorinhas angelicais, entram as “endiabradas”. Saem às ladainhas religiosas, chegam às sátiras sociais. É assim que a estrutura do pastoril se transforma numa encenação picante que seria capaz de fazer gelar padres e freiras se fosse apresentado nas calçadas das igrejas, palco da versão religiosa do folguedo (VALENTE, 1995).
Característicos da região nordestina e em algumas partes da região norte do país, o Pastoril ganhou solo fértil em terras potiguares. Em alguns municípios norteriograndense os Pastoris estão ativos sejam em suas representações de cunho religioso ou profano.
Podemos encontrar essa dança da cultura popular nos municípios de Natal (Praia de Ponta Negra e Bairro do Bom Pastor), São Gonçalo do Amarante, Ceará-Mirim, Pedro Velho, Nísia Floresta, Tibau do Sul, São Paulo do Potengi e em Parnamirim (Praia de Pirangi), alternando-se em fases de apogeu e de declínio.
Nos municípios pesquisados figuram nessa “brincadeira” os Pastoris religioso e profano. Em sua versão religioso-profano, este pastoril no RN surgiu no início do século XX, vindo da vertente do pastoril religioso galego-português que se ressignifica nesses municípios a cada representação.
Em São Gonçalo do Amarante, por exemplo, além do Pastoril Dona Joaquina, há os pastoris Estrela de Belém, Estrela Guia e Estrela do Norte em sua vertente religiosa. Esses pastoris exibem-se em apresentações culturais nos distritos rurais e sede da cidade em eventos de cunho religioso ou em períodos festivos da cidade.
Em Ceará-Mirim quem comandou os pastoris nos tempos áureos foi a família Américo. Este pastoril de caráter profano-religioso é lembrado por uma das pastoras como um “pastoril de entontar”. O mesmo já perdura a mais de seis décadas sendo que o mesmo teve suas fases de declínio e de apogeu.
Apresenta uma característica peculiar em sua formação de pastoras sendo doze para cada cordão acompanhadas da Mestra, Contra-mestra, Diana, Estrela, Florista, Anjo, Velho e um conjunto de sanfoneiros que acompanham as cançonetas interpretadas pelas pastoras.
Em Nísia Floresta o pastoril apresenta duas composições: uma formada apenas por adolescentes e outra por velhos ligados ao grupo de idosos da referida cidade. O grupo formado por adolescentes é da comunidade de Campo de Santana, distrito rural de Nísia Floresta; já o Pastoril dos Idosos concentra suas atividades na sede do município.
Na Praia de Pirangi, distrito de Parnamirim o pastoril recebe o nome de Flor do Lírio e é dançado por crianças. Segundo uma de nossas entrevistadas a dança do Pastoril está presente na referida praia a pelo menos sessenta anos. Em tempos idos era dançado por filhas de pescadores que passaram seus conhecimentos da dança para suas filhas e netas.
O Pastoril Flor de Lírio é formado, geralmente, por sete pastoras em cada cordão, mais a Diana e o palhaço. Uma das funções dessa formação de pastoras é resgatar as canções para que as mesmas não caiam no esquecimento.
No Bairro de Ponta Negra, na vila dos pescadores, registramos o Pastoril profano da Saudade ou da Melhor Idade que tem apoio do projeto de extensão Encantos da Vila da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
O pastoril nessa região data das duas últimas décadas da primeira metade do século passado quando a vila era habitada por pescadores que viviam da pesca e de suas senhoras que trabalhavam na confecção de renda para complementar a renda pecuniária da família. O Pastoril da Saudade ou da Melhor Idade é composto por dezesseis integrantes sendo quinze mulheres e um homem, além do acompanhamento da orquestra. Assim como outros pastoris do Rio Grande do Norte, este é composto pela Mestra, Contra-Mestra, Diana e as demais participantes recebem nomes de acordo com sua posição no cordão.
Em São Paulo do Potengi, na cidade de Pedro Velho e em Tibau do Sul, o pastoril apresenta-se em sua versão profana, aparece, desaparece e reaparece alternando-se em fases de declínio e apogeu.
Em colóquio com alguns dos participantes dos pastoris citados observamos que a aprendizagem se dá observando os movimentos da dança e ouvindo as canções cantadas pelos brincantes.
Merleau-Ponty (2004), afirma que não há visão sem pensamento. Sustenta que não basta pensar para ver, que a visão é um pensamento condicionado que nasce a partir da experiência do corpo, como se fosse impelida a pensar por ele. Daí podermos ter a compreensão de que existe uma escolha pessoal na visão de quem enquadra e captura cada cena. A visão tem função perceptiva e cognitiva, pois possibilita saber das coisas no espaço, e até tomar ciência do próprio corpo, tendo como escopo o visível.
É através do olhar que primeiro interrogamos as coisas, e devemos compreender o corpo, de forma geral, como um sistema voltado para a inspeção do mundo (MERLEAU-PONTY, 2004).
O ato de ver é para Merleau-Ponty (2004), o meio de ausentar-se de si mesmo para de dentro assistir à “fissão do Ser”. Há nesse olhar, portanto, uma fenda que se abre no ser pelo ato de ver, ato este que “nos remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui” (DIDI-HUBERMAN, 1998, 31). Algo no que vemos nos olha, e nos olha a partir desse vazio, constitui mesmo esse vazio aberto no ato de ver. O vidente, então, pensa preenchê-lo, o vazio, com o que vê, mas isso não se dá. “Imerso no visível por seu corpo, embora ele próprio visível, o vidente não se apropria daquilo que vê: só se aproxima dele pelo olhar, abre-se para o mundo” (MERLEAU-PONTY, 2004, 16).
Merleau-Ponty (2004), diz ser a visão um pensamento condicionado pelo corpo, pelos “acontecimentos do corpo”, que nos fazem ver uma coisa ou outra. Esse pensamento se dá num “mistério de passividade”, sem seu próprio arbítrio sobre as leis que o regem. Continua argumentando que quando, por exemplo, se quer compreender como a situação dos objetos é vista, não há outro recurso senão supor a alma, que sabe onde estão as partes do seu corpo, e que é capaz de, a partir daí, dirigir sua atenção ao espaço que está no prolongamento dessas partes.
No pastoril, ver é importante, pois não existe escola de formação para essa aprendizagem da cultura. É através da visão que os brincantes aprendem os movimentos da dança do pastoril celebrada no corpo que se expressa através da dança. Podemos pensar que o corpo do brincante de pastoril é um corpo trans-substanciado, e é nessa transubstanciação que este corpo cria e se expressa.
Não há uma racionalidade técnica ou uma padronização do corpo e do gesto, no entanto, podemos observar que o aspecto lúdico, trágico, cômico e estético é evidenciado na dança. Essa dança como saber da tradição está como afirmam Nóbrega e Viana (2005, p. 19), inscrita nos corpos, “[...] saberes constantemente renovados, pois o corpo que dança está sempre criando novos hábitos, novas significações”.
Pesquisar o universo da cartografia do Pastoril no RN, significa entrar em contato com as diferentes terminologias, a dicotomia entre arte e arte popular, a industrialização e o processo de mercadorização das danças populares e a falta de políticas culturais abrangentes para envolver as manifestações da tradição, bem como pensar as possibilidades pedagógicas que esta dança apresenta, seja como uma aprendizagem informal nos terreiros onde se dança o Pastoril, seja nos espaços escolares quando se resignifica esta dança nos grupos parafolclóricos das instituições de ensino ou ainda em espetáculos com caráter mercadológico.
Enfim, no Pastoril assim como as outras danças folclóricas brasileiras, seus brincantes “[...] dançam para não esquecer quem são, dançam em busca da beleza, dançam para embelezar, criam cultura e assim atribuem sentidos à vida” (NÓBREGA, 2000, p. 58).
Referência:
ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. 2 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed.34, 1998.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
GASSNER, John. Mestre do teatro I. Tradução de Alberto Guzik e J. Guinsburg. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1997.
MELLO, Luiz Gonzaga de; PEREIRA, Alba Regina Mendonça. O pastoril profano de Pernambuco. Recife: FUNDAJ/ Editora Massangana, 1990.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
NÓBREGA, Terezinha Petrucia da. Educação motora e dança: rua, palco, escola... uma coreografia desejável. In: Educação Motora. III Congresso Latino Americano de Educação Motora e II Congresso Brasileiro de Educação Motora, Natal, p. 54-59, set.-out. 2000.
NÓBREGA, Terezinha Petrucia da; VIANA, Raimundo Nonato Assunção. Espaço e tempo das danças populares: uma abordagem coreológica. In: Revista Paidéia: Revista Brasileira de ensino de arte e educação física. v. 1, n. 1, dez. 2005. Natal: UFRN/ PAIDEIA/ MEC, 2005.
VALENTE, Waldemar. Pastoris do Recife antigo e outros ensaios. Recife: 20-20 Comunicação e Editora, 1995.
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
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